quinta-feira, 30 de junho de 2011

O Pátio das Cantigas

"Os sonhos, dissabores, paixões, ciúmes e alegrias dos que vivem num desses pátios encravados entre o casario dos bairros populares de Lisboa"
OU
"Eis o caso nunca visto
Das tentações do demónio
No Pátio do Evaristo"

Veio ontem S. Pedro pôr fim à saison dos Santos populares.
Lembrei-me, a propósito, de uma visita que fiz há tempos ao Pátio das Cantigas, ali para os lados da Graça.

Transponho o grande portão verde escuro e entro na “Villa Souza”. Atravesso um pequeno átrio, onde motas e bicicletas descansam encostadas às paredes e entro, então, no pátio que me é tão familiar. Se a luz do sol se eclipsasse por uns instantes, roubando o colorido a este quadro, a sensação de ter recuado no tempo e fugido à realidade seria ainda mais completa.

À minha direita, no rés-do-chão, é a casa da D. Rosa. No 1º andar, mora o seu pretendente, Narciso Fino, bêbado bonacheirão, e o seu filho, Rufino Fino. Lá estão eles à janela a fazer ginástica sueca. E, diz Narciso: “Mau, mas nós afinal estamos em suecas ou estamos em cuecas?!...”.

No prédio em frente, no número 7, a fadista Amália e a tímida irmã Susana moram com o avô. No número 4, vivem os irmãos Bonito com quem as duas acabariam por casar. Lá em cima, nas águas-furtadas, mora o vizinho Engenhocas, que “transmitia as cantigas para todo o pátio ouvir”.
E há mais ecos do passado. Ao ver roupa estendida num arame, tenho de me perguntar se não será o mesmo estendal que Narciso tentava colocar quando, ao fazer um furo na parede, descobriu uma fonte de ... vinho. “Vinho?! Mas isso é milagre!”; “Não é milagre. É palheto!”.
E os pombos que por aqui esvoaçam? Serão os descendentes do pombinho que foi o primeiro a avisar D. Rosa de que a sua filha chegara do Brasil? Hoje têm outras preocupações, especialmente a de se manterem afastados do gato preto que, ali perto, finge dormitar ao sol.
Já quanto ao candeeiro no centro do pátio não tenho dúvidas. É o orgulhoso herdeiro do famoso a quem Narciso se dirigia em noites de bebedeira:  “Voscência .... podia fazer o obséquio .... de me dar um bocadinho do seu lume?...”
No primeiro andar, atrás de mim, abre-se uma janela e uma voz de tenor lírico espalha-se pelo pátio. É Evaristo, o droguista, a tentar educar os vizinhos, fazendo-os ouvir ópera, que é “a música mais própria para operários!”.  Homem irascível, não lhe perguntem se "tem cá disto", sob o risco de o “dessincronizarem” por completo.
Chega a hora de partir.
Ao dirigir-me para a saída, sou obrigada a desviar-me do caminho, para deixar passar a vizinhança do pátio, toda engalanada de arquinho e balão, a cantar a marcha do S. João Bonito.
Pergunto-me o que pensaria Evaristo sobre a dessincronização temporal deste refrão que, a mim, sempre me atormentou. Apesar disso, acabou por se tornar numa modinha intemporal:

 “Stº António já se acabou
O S. Pedro está-se a acabar
S. João, S. João, S. João
Dá cá um balão para eu brincar”

Foto: Muhipiti. Vila Souza. Lisboa. Abril 2011

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